sábado, 21 de novembro de 2009

Do Quilombo a Orixá

Quando era miúdo lembro-me de, por vezes, ouvir falar que determinada mulher era bruxa. Normalmente era velha e feia. E eram sempre mulheres.
Na minha imaginação tais adjectivos tornavam a dita pessoa num ser maquiavélico, a tal ponto que, se a visse à distância, fugia a sete pés, ai não! Depois fui para África e lá já não havia bruxas. Em contrapartida havia feiticeiros que, em especial o povo nativo, consultava ou temia. Pelo que tenho lido, também o Brasil é país de tais tradições e místicas. Compreende-se. O povo brasileiro é, na sua maior parte, de origem africana.
Vem tudo isto a propósito de quê? Bom, muito se fala que nós, portugueses, vivemos em recessão, crise, temos desemprego, somos infelizes e até passamos fome. Tudo isto parece uma mentira pegada. Nós só vivemos assim porque queremos. Consultando os jornais, revistas, rádio, televisão compreende-se que, se não temos dinheiro, somos traídos, temos doenças, o fisco processa-nos, é porque queremos. Somos mas é masoquistas.
Não há jornal que se preze, revista para ele ou para ela, programa de TV com audiência, que não tenha o seu bruxo, socióloga, astróloga, médium, mestre, vidente, professor e até cientista que não resolva os nossos problemas.
Está doente? Consulte a taróloga. Não tem dinheiro? Vá ao astrólogo. O seu negócio está a ir abaixo, consulte o mestre professor cientista qualquer coisa. A sua mulher anda a traí-lo com o patrão, não desespere, vá ao espiritualista; o seu marido acha que gosta mais do amigo do que de si, resolva o problema e consulte um professor africano, brasileiro ou até português, pois também já os há e dos bons. Resolvem tudo.
Mas se o seu problema é impotência sexual, então compre pau-de-cabinda, ou ponha um talismã ao pescoço, ou uma pulseira, que da próxima vez a sua parceira até foge. Quer dizer, não abuse porque, com tanta potência, não há parceira, ou parceiro, que o aguente.
O senhor é médico e não tem doentes, porque estes foram consultar os videntes? Não desespere, consulte um cientista, que por sinal até é licenciado por correspondência, e vai ver que tudo fica bem. O seu filho anda na droga, ou há alcoolismo em casa? Tudo existe porque você quer. É uma questão de comprar o jornal diário, ou a revista semanal, ou ver o programa da manhã (ou da tarde) da televisão. E até na rádio já dão consultas em directo. Falam é francês...
Assim, com todos estes especialistas, somos infelizes porquê? Não temos dinheiro porque queremos. É só mandar ler as cartas. Não acredita? Então vá a uma das novas igrejas que por aí proliferam e verá que tudo se resolve: a carteira fica cheia, da barraca passa para uma vivenda com piscina, esquece a velha bicicleta e compra um carro último modelo, da lojita sem clientes passa a ser detentor de uma grande superfície. Não sei se será na verdade assim, mas que eles prometem, ai isso prometem...
E pelos vistos a estes novos técnicos diplomados não faltam clientes. Ponha-se na bicha. Ou então consulte-os pelo telefone, telemóvel, e-mail ou vá à Internet que tudo se resolverá. Não tem estes meios? Então escreva. Não sabe escrever? Então ponha a mente a trabalhar, que, com tantos que aí há, algum há-de captar as suas vibrações. Ou reze uma dessas orações mágicas, ou vire os olhos para o espaço e consulte os astros.
Este é um negócio rentável pois até já há lojas, armazéns e supermercados de artigos esotéricos.
Conheci há anos um desses parapsicólogos. Era burro que nem uma porta, não sabia ler nem escrever ou escrevia muito mal, mandava fazer amuletos duma chapa bem ranhosita, por sinal, cobertos a tinta dourada, que lhe ficavam na altura por menos de um escudo por unidade e que ele vendia a 10 contos. Numa dessas revistas que consultei para escrever este texto, gaba-se dos 33 anos de experiência, que é o parapsicólogo do século XXI e até já tem página na Internet. Clientes não lhe faltavam e, por certo, não lhe faltam. Resolvia tudo, até a vida dele, pois tinha bom carro, bom apartamento, cão de raça lu-lu para a esposa e barriga bem grande. E usava uma barba característica. Só lhe faltava o chapéu e vassoura para voar.
Eu, por mim, vou continuar com os meus problemas. Consulto o meu médico de família e procuro cumprir os meus deveres, porque me nego a tais consultas, embora propostas já me tenham chegado por todos os meios. E com grandes promessas.
Mas como diz o ditado "faz o que eu digo, não faças o que eu faço". A felicidade está aí; dê um pontapé numa pedra e vai ver que tudo se resolve. Se não se resolver, pelo menos fica com uma unha arrancada. E até há testemunhos escritos nos diversos anúncios que comprovam que tudo se resolve. Dizem que estas práticas só são procuradas pelo povo, quando o mesmo é atrasado culturalmente. Mas hoje Portugal já não é um país de analfabetos. Somos é um país em que a nossa cultura está a ser progressivamente abafada por culturas estranhas. Em vez de absorverem a rica tradição e hábitos que tínhamos há séculos, os que nos procuram para viver e trabalhar impingem-nos as patranhas que querem. Cultos começamos a ser, mas ingénuos não deixaremos de ser também.
Abram os olhos.

Este texto foi escrito e publicado no Jornal da Mealhada do dia 7 de Abril de 2004. Infelizmente continua actual.

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